Saramago, José, História do Cerco de Lisboa, sl., Círculo de Leitores, 1999.

Este é, sem dúvida, um dos mais notáveis romances de Saramago. Com a escrita inigualável que o caracteriza, o Autor apresenta-nos uma história que tem como protagonista Raimundo Silva, um modesto revisor de uma editora, e que mora num prédio velho do Bairro de Castelo, na zona histórica de Lisboa. Os seus dias são preenchidos com a leitura e revisão de várias obras, sob a responsabilidade de uma editora, e “apesar de tantos anos desta monótona vida, ainda o toca a curiosidade de saber que palavras o estarão aguardando, que conflito, que tese, que opinião, que simples enredo” [p.57]. É um homem que, vivendo solitariamente, não hesita na constante e diária observação do mundo à sua volta e numa aprendizagem autodidata, resultado de um digno esforço.
Um dia, a sua vida rotineira e organizada deparar-se-á com um autêntico alvoroço. O motivo será a revisão de um livro de história, da autoria de um historiador credenciado, sobre a conquista de Lisboa aos muçulmanos por D. Afonso Henriques e suas tropas no ano de 1147. A profunda antipatia pela obra em questão, que o revisor considera pejada de anacronismos, a par de uma profunda antipatia pelo autor-historiador, que Raimundo Silva considera demasiado presunçoso, levam-no a assumir um comportamento oposto ao que fora até então a sua conduta profissional. Com humor fino, Saramago descreve-nos esse momento, em tudo comparável à pura maldade de um Mr.Hyde e onde desaparecem todos os traços de Dr.Jekill: “Com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra NÃO. Agora o que o livro passará a dizer é que os cruzados não auxiliaram os portugueses a conquistar Lisboa” [p.48]. A consequência de enviar o texto adulterado para a editora será o princípio de um imprevisível enredo vivenciado pelo protagonista: a sinuosa e, quiçá, divertida história de amor deste homem de meia-idade, solitário e sisudo, por uma mulher que se afigura inalcançável. Mesmo com os sentimentos alvoraçados, não se irá resignar. E tentará conquistar a mulher amada esperando que a vida, finalmente, lhe dê aquilo de que nunca se lembra de ter tido… “o sabor que ela [a vida] certamente tem” [p.258].